Caso UnB abre debate sobre fundação privada em universidade pública
As lixeiras no gramado em frente à reitoria da Universidade de Brasília [UnB] coloriam a tarde do sábado, 12 de abril, na sóbria capital federal. Naquela semana, aquele já era o ponto mais animado da cidade depois do Congresso: rodas de samba, partidas de vôlei e futebol, aulas de ioga, milhares de pessoas circulando diariamente. Vivia-se o ápice da ocupação da reitoria, iniciada por cerca de 300 estudantes em 3 de abril.
Em meio ao rendez-vous, no entanto, uma motivação sem muito espaço para brincadeiras: denúncias de abusos com dinheiro público contra o reitor da UnB, o psicólogo Timothy Mulholland. O caso surgiu em fevereiro, em meio às notícias de uso irregular dos cartões de crédito corporativos, recebidos por funcionários do alto escalão para cobrir gastos emergenciais ou essenciais, no desempenho da função.
Levantamento encaminhado à CPI que investigava as denúncias mostrou a UnB como líder no ranking de instituições federais em gastos com os cartões. Mulholland foi acusado de usar recursos públicos da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos [Finatec] para mobiliar o apartamento funcional fornecido a ele pela universidade.
Total da fatura: R$ 470 mil.
Destes, admitiu ter gasto R$ 350 mil em móveis e utensílios, mas alegou que não havia benefício próprio, pois o apartamento seria utilizado para compromissos oficias. Entre as compras, televisões de alta definição e uma lixeira de metal de R$ 990. Menos vistosas, as que enfeitavam o gramado em frente à reitoria foram doadas por pais, alunos e funcionários da universidade. Eram de plástico.
JOGO DURO – A ocupação da reitoria pelos estudantes durou 15 dias e resultou na queda da cúpula da UnB. Além de Mulholland, que se licenciou do cargo mas acabou renunciando em seguida, também pediu desligamento o vice-reitor Edgar Mamiya.
A ocupação teve conseqüência mais duradoura uma vez que pôs o relacionamento entre fundações privadas e universidades no centro do debate público. Após o escândalo em Brasília, o Ministério da Educação publicou portaria que endureceu as regras para convênios entre as instituições, embora o ministro Fernando Haddad tenha dito que as medidas já estavam em estudo antes de o episódio da UnB eclodir.
O fato é que a principal mudança na legislação atinge o epicentro do caso Mulholland: acaba com a possibilidade de as fundações remunerarem as universidades com doações de serviços ou bens, como os móveis do luxuoso ex-apartamento do ex-reitor. Pela novo procedimento, em vigor desde 14 de abril, o dinheiro captado pelas fundações precisa ser incorporado ao orçamento das universidades. Se não cumprirem as regras, que incluem repassar às universidades seus relatórios contábeis anuais e abrir vagas em seus conselhos administrativos a membros indicados pelos conselhos universitários, as fundações podem ter o credenciamento suspenso.
O próprio Haddad admitiu que, se as novas regras estivessem em vigor, “não teria ocorrido esse e muitos outros casos de irregularidades que estão sendo objetos de questionamentos”
PÚBLICO E PRIVADO– Os “outros casos de irregularidades” a que se referiu o ministro se espalham pelo País. A principal reclamação é a cobrança de matrículas e mensalidades em instituições públicas de ensino.
Em São Paulo, o Ministério Público recomendou à Universidade Federal do Estado [Unifesp] não cobrar mais por cursos oferecidos por meio das fundações. É uma prática recorrente na maioria das instituições federais de educação superior, inclusive a Ufba.
Fundações da Ufba não estão credenciadas
Na Universidade Federal da Bahia há cinco fundações privadas de apoio. Duas delas, a Fundação Faculdade de Direito da Bahia [FFDB] e a Fundação Escola Politécnica [FEP], preexistem à própria universidade –antes da criação da Ufba nos anos 1950, atuavam como instituições mantenedoras da Faculdade de Direito e da Escola Politécnica.
As três restantes, Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão [Fapex], Fundação ADM e Fundação Escola de Administração [FEA] surgiram nos anos 1980 e 1990, com a finalidade específica de apoiar projetos de pesquisa, ensino e extensão de interesse da universidade, conforme prevê a Lei 8.598/1994, que regula a questão.
De todas, só a Fapex está em dia com o Ministério da Educação, que emite um certificado de autorização válido por dois anos, período no qual fundações e a universidade podem assinar convênios. FEA, FFDB e Fundação ADM tentaram recredenciamento no Conselho Universitário [órgão máximo da Ufba] no segundo semestre de 2007, mas os pedidos não foram aprovados– a FEP está sem o certificado desde 2005 por problemas fiscais. Segundo a reitoria, o debate foi interrompido após os representantes do DCE [Diretório Central dos Estudantes] pedirem vistas para analisar os processos. Sem a credencial, as fundações não podem firmar novos acordos com a Ufba.
SURPRESA– Ao analisar a documentação das fundações, os integrantes do DCE afirmam ter verificado descumprimento de várias normas previstas em lei, até mesmo de resoluções internas da Ufba. “Ficamos surpresos com o número de irregularidades, bem maior do que imaginávamos“, diz Emanuel Freire, aluno de Direito e um dos representantes estudantis no Conselho Universitário. Desde então, o DCE faz campanha por auditoria pública, a ser realizada pelo Tribunal de Contas da União [TCU], em todas as fundações privadas em funcionamento na Ufba. O TCU fiscaliza os projetos com a universidade. Nos demais, as fundações contratam auditorias particulares que, segundo os estudantes, não são transparentes.
Movimento estudantil quer abrir caixa preta
Além da campanha por auditoria pública, o DCE pretende enviar uma representação aos ministérios públicos estadual e federal até o fim desta semana. No documento, vai apontar procedimentos das fundações que considera irregulares. Entre eles, oferecer cursos pagos em nome da universidade –há casos em que se cobra até R$ 25 mil por um diploma emitido pela Ufba –e firmar acordos com empresas e órgãos públicos sem benefício comprovado para a universidade.
Neste ponto, o movimento estudantil se refere a contratos de prestação de serviço de consultoria e seleção de mão-de-obra para Sebrae, órgãos do governo do Estado, Braskem, Pirelli, Coelba, Petrobrás, Siemens, TIM e Semp Toshiba, entre outras empresas e entidades.
É o que consideram a “caixa preta“ das fundações, a qual necessitaria do levantamento minucioso a ser realizado pelo Tribunal de Contas da União. Para o diretor-executivo da Fapex, Osvaldo Barreto, é precisamente aí onde a reivindicação do DCE não procede. “Não compete ao TCU fiscalizar os negócios privados das fundações, só os que envolvem a universidade. Não é da alçada do tribunal de contas assuntos de direito privado“.
Os estudantes rebatem: mesmo nos contratos com empresas, as fundações utilizariam o nome e o prestígio da universidade, o que configuraria um desvio de função.
LÓGICA DE MERCADO – O uso do espaço público da Ufba para fins particulares é outro problema apontado, sobretudo no caso da Fundação Faculdade de Direito, que funciona nas dependências da instituição de quem empresta o nome. Em um folheto divulgado este mês, a FFDB afirma estar fora da alçada do TCU por se tratar de uma instituição regida por uma “lógica de mercado“. Para os estudantes, há na afirmação uma contradição ao princípio geral que autoriza os convênios entre as fundações e a universidade, que é a finalidade de apoiar projetos de interesse das instituições federais.
O movimento conta com apoio de acadêmicos como o professor aposentado de medicina Luiz Umberto Pinheiro. “A presença de fundações privadas em qualquer instituição pública é incompatível.
Os objetivos são opostos ao interesse público”, ele afirma, apontando que há nas fundações um sinal da privatização das universidades públicas. No MP estadual, o assunto é tratado com prudência. O promotor Luiz Eugênio Fonseca Miranda, da Promotoria de Fundações, está ciente da intenção dos estudantes, mas prefere não comentar o caso enquanto não tiver acesso ao teor completo das denúncias.
Antes do início de qualquer investigação, há um problema a ser enfrentado: definir a quem cabe conduzir o inquérito. Isso depende de onde estiver a possível irregularidade. Caso seja na Ufba, a alçada é do MP federal. Se for nas fundações, o responsável é o Ministério Público do Estado.
Para reitor, solução é a autonomia universitária
O reitor da Ufba, Naomar de Almeida Filho, tem uma expressão para definir a presença das fundações privadas nas universidades brasileiras. Chama-as de “mal necessário“.
Para Naomar, sem as fundações e com o atual modelo adotado pelo País para financiar as instituições públicas de ensino superior, que dificulta a atração de recursos, a universidade teria de suspender alguns de seus serviços.
“Temos conhecimento das recomendações do TCU, mas é uma situação complicada. Se não mantivermos certos convênios, setores da Ufba irão parar“.
Atualmente a área mais dependente de acordos com as fundações para funcionar é o Hospital Universitário Edgard Santos [Hupes]. Recentemente, o diretor do hospital, Hugo Ribeiro Neto, afirmou que perto de 30% dos funcionários do Hospital Universitário [cerca de 400 pessoas] são contratadas pela Fapex. O procedimento é ilegal, pois todos os funcionários de órgão públicos, exceto aqueles em cargos de confiança, devem ser concursados.
Na avaliação do reitor da Ufba, só com mais autonomia para cuidar do próprio orçamento as universidades poderiam prescindir da intermediação das fundações.
Naomar acredita ainda que parte da resistência às fundações seja um problema de linguagem.
Ele se refere aos cursos oferecidos por elas, que seriam confundidos com pós-graduações [mestrado e doutorado]. “O que as fundações oferecem são especializações ou extensões, sem qualquer proveito para a ciência. Só os particulares que ganham um acréscimo em suas carreiras se beneficiam“.
Por isso, o reitor defende: não é justo a universidade transmitir conhecimento de graça.
Fonte: http://www.atarde.
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