sábado, 3 de maio de 2008

Ciladas da avaliação de desempenho: o ENADE em questão

Portanto, com o intuito, de apresentar uma problemática mais importante a se discutir, encaminhamos ao debate este texto, escrito por Antônio David, estudante de Filosofia da USP , ex-diretor de Políticas Educacionais da UNE.


Ciladas da avaliação de desempenho: o ENADE em questão*.


Em 1995, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.131/95, uma Lei abrangente que redefiniu as atribuições do Conselho Nacional de Educação e conferiu ao MEC a prerrogativa de realizar avaliações "fazendo uso de procedimentos e critérios abrangentes dos diversos fatores que determinam a qualidade e a eficiência das atividades de ensino, pesquisa e extensão".

Através desta Lei, o MEC instituiu o "Provão", uma exame nacional elaborado "com base nos conteúdos mínimos estabelecidos para cada curso, previamente divulgado e destinado a aferir os conhecimentos e competências adquiridos pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de graduação".

O Provão foi amplamente rechaçado pelo movimento estudantil, em âmbito nacional, em função de seu caráter produtivista e punitivo. Sucederam-se boicotes organizados pelas Executivas e Federações de Curso e pela UNE, com adesão crescente ano a ano.

A campanha pelo boicote acompanhava o mote "por uma avaliação de verdade", apontando não só para a negativa do Provão, mas sobretudo para a construção de uma outra avaliação: uma avaliação socialmente referenciada, que levasse em conta as diferenças regionais do Brasil, que apontasse para a regulamentação da educação superior privada e para a efetiva obrigação do Estado para com a educação superior em detrimento da competitividade imposta pela economia de mercado na educação superior, até então incentivada pelo MEC através da lógica do "premiar os melhores e punir os piores".

Tal avaliação deveria ser muito mais do que um mero teste. Deveria contemplar um conjunto de mecanismos, com ênfase na instituição, e não no "desempenho" do estudante. Por isso, fazia-se necessária a construção e consolidação de um sistema nacional de avaliação institucional.

Em 1997, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública incluiu no Plano Nacional de Educação - Proposta daSociedade Brasileira a seguinte meta, consensuada pelas dezenas de entidades e organizações do movimento social de educação reunidas na plenária final do II Congresso Nacional de Educação:

Revogar imediatamente a Lei 9.131/95 que criou o Exame Nacional de Cursos ("Provão"), substituindo-o por processos de avaliação institucional periódica do ensino superior, compreendendo a avaliação interna e externa de todos os setores envolvidos e tomando como referência o projeto político-acadêmico da instituição.

Em 2003, em resposta a quase dez anos de pressão, o MEC criou uma comissão, com representação estudantil, para discutir e elaborar uma proposta de avaliação institucional. A proposta foi discutida e consolidada no

II Seminário de Avaliação Institucional, ocorrido em setembro de 2003 na UFPE, organizado pelas Executivas e Federações de Curso e pela UNE.

Contudo, em 16 de dezembro de 2003, desconsiderando solenemente o movimento social de educação, o GovernoFederal arbitrariamente baixou a Medida Provisória nº 147, instituindo o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES e desfigurando quase que completamente a proposta original. O texto original da MP nº 147 não incluía o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - ENADE. Contudo, no decorrer da tramitação, o relator, então Deputado Federal e hoje prefeito de Taboão da Serra Dr. Evilásio (PSB-SP), sob o aval do MEC, incluiu no relatório o Exame. Ao cabo, a MP nº 147 foi aprovada como a Lei nº 10.861/04.

O ENADE veio em substituição ao Provão. Quando o MEC anunciou o fim do Provão, alguns chegaram até a fazer um ato em Brasília. Em comemoração, fizeram o "velório" e o "enterro" do Provão. Pura precipitação. O fato é que o ENADE guarda profundas semelhanças em relação ao seu antecessor, inclusive naqueles itens nefastos, contra os quais o movimento social de educação lutou:

a) Obrigatoriedade - De acordo com a Lei do SINAES, caso seja convocado, o estudante é obrigado a fazer o Exame (Art. 5º, § 3º), devendo a Instituição de Ensino Superior inscrevê-lo sob pena de punição institucional (Art. 10º,§ 2º). A obrigatoriedade é um dos muitos mecanismos pelos quais se transfere da Instituição para o estudante a responsabilidade pela boa ou má qualidade do ensino;

b) Conceituação - Segundo a Lei do SINAES, "a avaliação do desempenho dos alunos de cada curso no ENADE será expressa por meio de conceitos, ordenados em uma escala com 5 (cinco) níveis" (Art. 5º, § 8º). A conceituação posta no ENADE parte de uma concepção produtivista da atividade acadêmica e científica, pois é o que permite o "ranqueamento" das Instituições de Ensino Superior, inserindo a educação na lógica da economia de mercado;

c) "Ranqueamento" - Embora o resultado individual nominal não seja divulgado, a Lei do SINAES prevê a divulgação em separado dos resultados por instituição, permitindo dessa forma o "ranqueamento" das Instituições de Ensino Superior - IES (Art. 5º, § 9º). Ao invés de proceder à divulgação global dos resultados do processo de avaliação institucional, divulga-se em separado os resultados do ENADE justamente para permitir o "ranqueamento" feito por consultorias empresariais e sua publicização sistemática pelos grandes veículos de comunicação. Tal prática - diga-se de passagem, uma das marcas registradas da gestão de Paulo Renato de Souza no MEC - beneficia apenas os interesses privados na educação, pois tem servido única e exclusivamente para legitimar a presença de faculdades "caça-níqueis" no "mercado", que estampam nos outdoors o conceito "A" conferido pelo MEC exatamente do mesmo modo que uma certa empresa de calças jeans agrega valor em seu produto através de um centímetro quadrado de pano com a estampa "F" em letra maiúscula. A lógica é exatamente a mesma.

d) Premiação - A Lei do SINAES prevê ainda a conceção de bolsas de estudos aos estudantes de "melhor desempenho" no ENADE (Art. 5º, § 10º). Ou seja, a política de permanência, que deveria operar segundo um critério sócio-econômico, opera sob um recorte meritocrático, distorcendo totalmente seu objetivo. Quem recebe a bolsa não é o estudante que dela precisa para permanecer na faculdade ou universidade, mas aqueles que tiveram "melhor desempenho" no teste do MEC. Por não terem a bolsa, os estudantes que dela precisam são obrigados a trabalhar, não raro em período integral, isso quando não são obrigados a abandonar os estudos. E, trabalhando o dia inteiro, muitas vezes acabam não conseguindo estudar adequadamente. Por não conseguir estudar adequadamente, a possibilidade de se colocarem entre aqueles que têm os "melhores desempenhos" se reduz brutalmente. Fecha-se aí o ciclo vicioso. E dessa forma se reproduz na educação superior brasileira a estratificação social que marca a sociedade brasileira como um todo.



* Antônio David é estudante do curso de graduação em filosofia na Universidade de São
Paulo, Diretor de Políticas Educacionais da UNE, gestão 2005-2007.

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